No
dia 15 de outubro comemoramos os 50 anos de criação do Partido dos
Panteras Negras. Esta foi um dos principais movimentos de resistência
negra dos Estados Unidos na década de 1960 e influenciaria a luta
antirracista e anticapitalista em várias partes do mundo. Desde o
início, adotou o marxismo como referência teórica da sua ação e
logo se transformou no inimigo público número um do FBI. Através
do uso sistemático da infiltração policial, espionagem e
repressão, o Estado imperialista conseguiu destruí-lo. Dezenas de
militantes foram mortos e centenas presos. Contudo, o seu exemplo
ficou para as gerações que os sucederam. E, hoje, os “Panteras
Negras” são um símbolo da luta antirracista e anticapitalista na
América do Norte e no mundo.
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Panteras Negras em protesto na Assembléia Legislativa da Califórnia contra o desarmamento dos negros. |
Na
metade da década de 1950 conseguiu-se derrubar na Suprema Corte dos
Estados Unidos as leis segregacionistas (“iguais mais separados”)
que impediam o acesso da população negra às melhores escolas,
universidades e repartições públicas. Alguns anos depois – entre
1964 e 1965 –, foi aprovada uma série de leis garantindo os
direitos civis e o voto a todos os negros. Aquelas haviam sido
importantes conquistas democráticas – fruto de uma luta centenária
que custou milhares e milhares de vidas –, mas a condição social
dos negros, especialmente a dos mais pobres, não melhorou e, em
muitos casos, piorou. A igualdade formal (apenas perante a lei) não
tinha o condão mágico de eliminar por si só as profundas
desigualdades sociais criadas pelo capitalismo. A situação nos
guetos estadunidenses continuou explosiva.
Em
agosto de 1965 eclodiu uma sangrenta revolta em Los Angeles, no
estado da Califórnia. O conflito teve início quando policiais
brancos abordaram de forma violenta um jovem negro acusado de
“direção perigosa”. Aquela foi a gota d’água para uma
comunidade que vivia sendo humilhada e agredida cotidianamente. Após
duros confrontos entre a população e as forças de repressão,
seguiram-se saques, incêndios de carros e de estabelecimentos
comerciais. Aterrorizadas, as autoridades estaduais solicitaram a
intervenção da Guarda Nacional. Como resultado desses conflitos,
houve: 34 mortos, 1.032 feridos e 3.952 presos. E os prejuízos
ultrapassaram a cifra dos 40 milhões de dólares. Este era o clima
reinante na ensolarada e liberal Califórnia quando alguns jovens
negros começaram a se auto-organizar para defenderem sua comunidade
da ação truculenta da polícia.
Nasce
o Partido Panteras Negras para Autodefesa
A
história dos Panteras Negras começa em 15 de outubro de 1966 na
cidade de Oakland, próximo a São Francisco no mesmo estado da
Califórnia, quando Huey P. Newton e Bobby Seale (ambos na foto ao
lado) criam o “Partido dos Panteras Negras para Autodefesa”. Os
dois se conheceram no Merrit College e ali ingressaram numa das
muitas associações afro-americanas. Depois disso Newton, cursou
Direito e Seale entrou para o exército, onde ficou por quatro anos,
passando os últimos seis meses detido por se confrontar com um
oficial racista. Newton também conheceria a prisão por oito meses
por ter se envolvido numa briga. Ao se reencontrarem, chegaram à
conclusão de que era preciso organizar um partido que defendesse a
comunidade negra da cidade.
Em
pouco tempo a nova organização mudaria a face do movimento negro
dos Estados Unidos e influenciaria a luta antirracista e
anticapitalista em várias partes do mundo. O objetivo inicial,
aparentemente, não tinha nada de revolucionário. Um dia, Huey e
Bobby descobriram que podiam usar a própria legislação existente
para defenderem-se das sucessivas investidas policiais. Uma dessas
leis autorizava qualquer cidadão a ostentar arma de fogo com a
finalidade de proteger-se. Outra dava-lhes o direito de acompanhar de
perto a atividade policial. Os jovens viram nisso uma brecha que lhes
permitiria montar um grupo negro de autodefesa.
Nas
suas rondas noturnas, quando presenciavam cenas de abusos do poder,
saíam armados dos seus carros e com sua presença inibiam as ações
mais truculentas da polícia. Ao serem questionados pelas
autoridades, recitavam bem alto os seus direitos. Aqueles que
assistiam à cena insólita passavam a espalhar a notícia sobre a
existência de um bando de jovens negros corajosos que não temiam
enfrentar os policiais racistas.
O
programa dos Panteras Negras
O
grupo, além de um nome, precisaria de um uniforme que impusesse
respeito. Então,os “Panteras Negras” passaram a se vestir com
camisas azuis, calças e boinas pretas e casacos de couro. Eles
desde o início tiveram consciência do papel estratégico da
agitação e da propaganda na luta pela libertação da comunidade
negra. O primeiro e principal documento produzido foi o Programa de
10 pontos (O que queremos), do qual fizeram uma primeira edição de
mil exemplares. Nele, se afirmava:
1º
Nós queremos liberdade. Queremos poder para determinar o destino de
nossas comunidades negras.
2º
Queremos pleno emprego para nosso povo.
3º
Queremos o fim da ladroagem dos capitalistas brancos contra nossas
comunidades negras.
4º
Queremos casas decentes para abrigar seres humanos.
5º
Queremos educação para nosso povo! Uma educação que exponha a
verdadeira natureza da decadência da sociedade americana. Queremos
que seja ensinada a nossa verdadeira história e nosso papel na
sociedade atual.
6º
Queremos que todos os homens negros sejam isentos do serviço
militar.
7º
Queremos um fim imediato da brutalidade policial e dos assassinatos
de pessoas negras.
8º
Queremos liberdade para todos os negros que estejam em prisões e
cadeias federais, estaduais, distritais ou municipais.
9º
Queremos que todas as pessoas negras levadas a julgamento sejam
julgadas por seus pares ou por pessoas das suas comunidades negras.
10º
Queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz.
Este
programa sofreria modificações importantes conforme reforçava a
adesão do grupo ao marxismo e ao anti-imperialismo. Entre essas
mudanças está a inclusão das “comunidades oprimidas” ao lado
da “comunidade negra”, sinalizando que os “Panteras” lutavam
pela emancipação de todos os oprimidos e não apenas dos negros.
Também ocorreria a fusão de alguns itens e a inclusão de outro:
“Queremos o fim imediato de todas as guerras de agressão”, numa
clara referência crítica às intervenções do imperialismo
estadunidense no terceiro mundo, especialmente no Vietnã.
Estabeleceram
uma série de regras que deveriam ser seguidas à risca pelos
militantes da organização, como a proibição do uso de drogas.
Também era vetado o uso de bebida alcoólica durante o trabalho
partidário. Outro item dizia: “nenhum membro do partido cometerá
qualquer crime contra outros membros ou a população negra em geral;
não poderá furtar ou tomar do povo, nem mesmo uma agulha ou pedaço
de linha”. E: “todos os membros em posição de liderança devem
ler no mínimo duas horas por dia”. O trabalho de formação
teórica e política era uma das marcas dos “Panteras Negras”.
Uma
das primeiras atividades foi fazer uma coleta entre os poucos
militantes e alugar uma sede, que foi inaugurada em 1º de janeiro de
1967. Poucos meses depois, criaram o semanário The Black Panther,
que teve 537 edições (1967 e 1971), chegando a 150 mil exemplares.
Ainda em 1967 esta frente partidária ganhou um importante reforço
com o ingresso do escritor e jornalista Eldridge Cleaver.
Os
“Panteras” não passavam de um grupo de autodefesa negra local
com algumas dezenas de membros. Contudo, um fato os projetaria
nacionalmente. No começo de 1967, temendo pela existência de
milícias negras, os deputados estaduais da Califórnia passaram a
discutir um projeto de lei proibindo a exibição pública de armas
por civis, o “Mulford Act”. Ironicamente, até então o direito
de andar armado era uma das bandeiras dos conservadores e o
governador era justamente o direitista Ronald Reagan.
No
dia 2 de maio, dezenas de Panteras Negras, liderados por Seale,
realizaram uma demonstração armada no recinto da Assembleia
Legislativa, mas por engano entraram no plenário causando pânico
entre os parlamentares. Assim, o pequeno grupo de Oakland ganhou as
primeiras páginas dos principais jornais do país. De um lado, isso
atraiu a simpatia de milhares de jovens negros e, de outro,chamou a
atenção dos órgãos de investigação e repressão do Estado,
especialmente do FBI.
Logo
a mídia conservadora procurou difundir a falsa ideia de que os
“Panteras Negras” eram racistas – um racismo às avessas – e
que odiavam todos os brancos. Seale, numa entrevista, respondeu a
essas acusações infundadas:
“-
Quando alguém me diz que sou antibranco, coço a cabeça e penso:
antibranco, o que quer dizer com isso?
-
‘Quero dizer que odeia os brancos’, retruca o jornalista.
-
Eu, odiar os brancos? Mas o ódio é contra nós.
-
É a KKK que me odeia e quer matar-me devido à cor da minha pele. Eu
não quero matar nem maltratar ninguém pela cor da sua pele. Sim, há
alguma coisa que odiamos. Odiamos a opressão de que somos vítimas.
Odiamos os policiais que agridem e matam os negros. A nossa energia
queremos consagrá-la não a odiar quem quer que seja em virtude da
cor da pele, mas à luta para acabar com a opressão”.
Os
“Panteras Negras” não realizaram apenas demonstrações armadas,
eles também montaram um eficiente sistema de assistência social,
com refeitórios que serviam café da manhã para crianças e
adolescentes, clínicas médicas, escolas primárias e cursos de
formação política. Fizeram campanhas contra o alcoolismo e as
demais drogas, pois acreditavam que contribuíam para a desagregação
das comunidades negras. Possivelmente, o exemplo do movimento de
libertação da Argélia, vitorioso em 1962, os tenha inspirado. De
um grupo exclusivamente masculino, ele logo passou a aceitar o
ingresso de mulheres, que chegaram a representar mais da metade da
militância. A ativa participação delas – como Kathleen Cleaver,
Elaine Brown e Assata Shakur– mereceria uma página especial na
história dessa organização.
Os
Panteras Negras tinham uma forma de organização original. Seu órgão
dirigente denominava-se Comitê Central, seguindo a antiga tradição
comunista. Mas este não se organizavaatravés de um secretariado,
comandado pelo secretário-geral ou primeirosecretário. Uma
concepção militarista (com influência de Régis Debray) e
nacionalista-negra (que entende a população negra como uma nação
dentro da nação) leva que o cargo principal seja o de ministro da
Defesa, assumido por Newton. Seguido pelo presidente (Seale). Depois
vinha o ministro da Informação (Eldridge Cleaver), o chefe do
Estado-Maior (David Hilliard), o marechal de campo (Don Cox), o
ministro da Educação (Ray Massai Hewitt), o ministro da Cultura
(Emory Douglas), a secretária de comunicações (Kathleen Cleaver,
primeira mulher a assumir um cargo na direção nacional).Em
fevereiro de 1968,foi anunciada a integração do Comitê de
Coordenação Estudantil da Não Violência (SNCC, na sigla em
inglês)aos “Panteras Negras”. Três dirigentes daquela
organização passaram a compor o Comitê Central: Stokely Carmichel
(primeiro-ministro), H. Rap Brown (ministro da Justiça) e James
Forman (ministro de Assuntos Exteriores).
Marxismo
e terceiro-mundismo
Inicialmente,
o partido era influenciado pelo exemplo de Malcolm X, morto em
fevereiro de 1965, mas ao contrário deste não tinha relação como
islamismo negro. Sua perspectiva era laica, marxista e
terceiro-mundista. O assassinato de Luther King em 4 de abril de 1968
representou um duro golpe nas correntes que advogavam a resistência
pacífica contra a opressão à comunidade negra e levou a uma
radicalização maior de setores do movimento, inclusive os “Panteras
Negras”. Estes passaram por um momento de rápida ascensão, com um
aumento significativo da abrangência da sua organização e no
número de militantes.
Os
“Panteras Negras” foram muito influenciados pelo maoísmo e
faziam proselitismo do Livro vermelho do camarada MaoTse-tung, mas
também mostravam simpatias por outros revolucionários. Como disse
Ray (Massai) Hewitt: “Aprendemos com o presidente Mao, com Ho Chi
Minh e temos um profundo carinho por Fidel Castro”. Outro de seus
líderes, George Murray, já havia dito: “nosso pensamento se
inspira em Che Guevara, Malcolm X, Lumumba, Ho Chi Minh e Mao
Tse-tung”. Don Cox, por sua vez, afirmou: “aprenderemos com todos
aqueles que anteriormente mantiveram bem alto a chama
(revolucionária): Marx, Lênin, Stalin, Mao, Fidel, Che, Lumumba e
Malcolm X. E continuaremos aprendendo com todos que continuam
mantendo essa chama bem no alto: Ho Chi Minh, esses irmãos e irmãs
do Al Fatah, essas guerrilhas palestinas, e todos os camaradas em
armas, da Ásia e da América Latina”.
Theodore
Drapper, no seu livro Nacionalismo Negro nos Estados Unidos, constata
que “até o final de 1969, para os ‘Panteras Negras’, o
comunista estrangeiro favorito parecia ser Kim Il Sung, presidente da
Coreia do Norte, a julgar pelo espaço (no jornal) dedicado às suas
declarações e a seus discursos”. Como podemos notar, a ideologia
dos “Panteras Negras” era marcada por certo ecletismo – uma
mistura nem sempre bem articulada de diversas correntes marxistas.
A
aceitação do marxismo os levou, corretamente, a que fossem
contrários às teses de retorno à África, defendidas por grupos
minoritários, herdeiros de Marcus Garvey. Para os “Panteras”, o
país materno dos atuais negros era os Estados Unidos e não a
África. Discordavam de certo nacionalismo pan-africano, que
pretendia estabelecer a cultura africana como a verdadeira cultura do
negro estadunidense. Newton e Seale achavam que era preciso realizar
uma incorporação seletiva do que tinha de revolucionário e
progressista na cultura africana (e de outros povos do mundo) e não
os seus aspectos atrasados. Newton diria: “O que a nós concerne
cremos que é importante reconhecer nossas origens e nos
identificarmos com os povos negros revolucionários da África e os
povos de cor de todo o mundo. Porém, quanto a retornar aos antigos
costumes, não vemos necessidade de fazê-lo”. George Murray,
ministro da Educação, seria mais contundente ao considerar o
nacionalismo pan-africano “reacionário, insensato e
contrarrevolucionário”. Outro artigo do jornal dos “Panteras
Negras” ridicularizaria “os tontos que andam por aí declarando
que estão ‘simplesmente tratando de ser negros’ por usar
turbantes e túnicas e dizem aos negros que eles devem se vincular
aos costumes africanos e à herança africana, que deixamos faz
trezentos anos, que isto os vai fazer livres”.
Eles
não acreditavam que o combate principal era entre a totalidade da
comunidade negra e a totalidade da comunidade branca. Eles
acreditavam que o motor das transformações sociais era a luta de
classes, a luta contra o imperialismo e o capitalismo, que tinham à
sua cabeça o governo e as classes dominantes dos Estados Unidos. A
derrota do racismo e da opressão estava vinculada diretamente a uma
vitória nesse campo.
O
presidente dos “Panteras”, Bobby Seale, afirmaria: “Os
nacionalistas culturais e os Panteras estão em conflito em muitas
áreas. Basicamente, o nacionalismo cultural vê o homem branco como
opressor e não faz distinção entre brancos racistas e brancos
nãoracistas, como os Panteras fazem. Os nacionalistas culturais
dizem que o negro não pode ser inimigo do povo negro, enquanto os
Panteras acreditam que os capitalistas negros são exploradores e
opressores. Embora os Panteras Negras acreditem no nacionalismo negro
e na cultura negra, eles não acreditam que levarão à liberdade
negra ou à derrubada do sistema capitalista, e são, portanto,
ineficientes”.
Seale
reafirmaria essas ideias em outras oportunidades: “não combatemos
o racismo com racismo. Combatemos o racismo com solidariedade. Não
combatemos o capitalismo explorador com o capitalismo negro.
Combatemos o capitalismo com o socialismo de base. Não combatemos o
imperialismo com mais imperialismo. Combatemos o imperialismo com o
internacionalismo proletário”. Referindo-se à relação entre
racismo e dominação capitalista, insistiria: “o racismo e as
diferenças étnicas permitem que as estruturas de poder explorem as
massas trabalhadoras, porque é a chave através da qual mantém o
controle. Dividir o povo e submetê-lo é o objetivo da estrutura de
poder (…). É realmente a classe dominante, pequena e minoritária,
que domina, explora e oprime os trabalhadores e o povo laborioso (…).
Então, esta não é de todo uma luta racial (…). Na nossa visão é
uma luta de classes entre a massiva classe trabalhadora e a pequena
minoria da classe dominante, exploradora e opressora. Deixe-me
enfatizar novamente: acreditamos que a nossa luta é uma luta de
classes e não uma luta racial”.
Era
essa concepção que permitiria aos “Panteras Negras” fazerem
alianças com outros grupos radicais e socialistas, compostos
predominantemente por brancos, como o Partido Comunista dos Estados
Unidos, sem se subordinarem a eles. Muitas vezes se dirigem ao
conjunto do povo e não apenas aos negros. “O Partido dos ‘Panteras
Negras’ é um partido do povo. Estamos fundamentalmente
interessados em uma coisa: libertar todo o povo de todas as formas de
escravidão, com o objetivo de que cada homem seja seu próprio
dono”.
Como
vemos, os “Panteras Negras” – como partido revolucionário e
socialista – não se restringia à defesa dos negros
estadunidenses, pois sabiam que – apesar de mais oprimido –
representavam apenas 12% da população. Por isso, incorporaram
bandeiras mais amplas. Estiveram na linha de frente da campanha
contra a guerra do Vietnã, conscientizando os jovens de que aquela
era uma guerra imperialista e não devia ser apoiada. Fizeram frentes
de ação política com várias entidades, como a dos “Estudantes
por uma sociedade democrática”. Contribuíram para a formação do
“Partido da Paz e da Liberdade” – uma organização
multiracial–, que lançaria Eldridge Cleaver como candidato à
presidência da República nas eleições de 1968, obtendo 50 mil
votos.
Em
julho de 1969, os “Panteras” patrocinaram a Conferência nacional
pró-frente única contra o fascismo. Dela, participaram
representantes do Partido Comunista dos EUA, e entre eles o doutor
Herbert Aptheker, especialista na história dos negros americanos,
que fez um longo discurso. Diante das críticas feitas por alguns
grupos negros, Seale afirmou que os comunistas haviam trabalhado mais
pelo sucesso da conferência contra o fascismo que qualquer outra
organização e, por isso, garantiram o direito de estarem ali e
utilizarem a palavra. Isso, é claro, não eliminava as diferenças
teóricas e políticas entre as duas organizações de esquerda, que
mantinham entre si relações respeitosas. Sabiam que o inimigo era
outro.
Por
isso, chegaram mesmo a propor a constituição de “um partido novo,
um novo partido dos trabalhadores, ou como o queiram chamar-lhe (…)
uma frente de libertação norte-americana, composta por todos os
povos dessa nação”, afirmou Seale.
A
posição de Newton e Seale em fazer alianças com organizações
radicais e socialistas brancas – inclusive em constituir um partido
de frenteúnica – fez com que surgisse uma divergência no interior
da organização. Estas, por exemplo, foram as causas da demissão de
Carmichael e de outros militantes da direção dos “Panteras
Negras” em julho de 1969. “Não posso aprovar politicamente as
alianças realizadas pelo partido, porque a história dos africanos
que vivem nos Estados Unidos tem demonstrado que qualquer aliança
prematura com radicais brancos tem levado à completa submissão dos
negros aos brancos, mediante o controle direto e indireto da
organização negra”, declarou Carmichael. Em 1966, quando ainda
era presidente do SNCC, ele havia afastado todos os estudantes
radicais brancos e agora via o seu novo partido se aproximar desses
mesmos estudantes e propor-lhes a construção de uma organização
política de frenteúnica. Seale rebateu afirmando que Carmichael
tinha um temor paranoico em relação à militância radical branca,
fruto das dificuldades encontradas no passado no interior da SNCC. Os
“Panteras”, que tinham outra história, não carregavam tais
preconceitos.
Num
discurso, Newton chegou a afirmar: “Houve um tempo em que
acreditávamos que só os negros eram colonizados. Porém agora creio
que devemos mudar o nosso discurso em certa medida, porque todo povo
norte-americano tem sido colonizado, se consideramos a exploração
como um efeito do colonialismo, já que esse povo é explorado”. O
líder dos “Panteras” amalgamava os conceitos de exploração e
colonização. Assim, todos os trabalhadores brancos e negros eram
explorados e, portanto, colonizados pelo capitalismo na sua fase
imperialista. Uma argumentação original, embora bastante imprecisa.
Novamente,
contra aqueles que acreditavam ser possível constituir um cinturão
de Estados negros e socialistas na América do Norte, Newton
argumentava que essa experiência não poderia sobreviver se o
restante dos Estados Unidos continuasse capitalista. “Atualmente,
o Partido dos Panteras Negras opina que não queremos estar numa
situação típica de enclave, pois ficaríamos mais isolados que
estamos agora”. Ou, como afirmaria Newton: “Não poderíamos
(vencer) somente na colônia (referindo-se à comunidade negra
americana), porque seria como cortar um dedo de uma das mãos, pois
elas continuariam funcionando (…). Para vencer o monstro é preciso
vencê-lo em sua totalidade”. Para isso, era preciso unificar a
luta dos “radicais brancos e brancos pobres” dos Estados Unidos
para realizar uma revolução socialista em escala nacional e
internacional.
Em
um dos discursos feitos na Conferência antifascista de Oakland,
Seale afirmaria: “Não dizemos que a autodeterminação do povo
negro nas comunidades negras seja incorreta. É necessária. Porém,
não estamos dizendo que o povo negro é uma nação só por ser
negro. Dizemos que é uma nação porque sofre essa mesma opressão
econômica; porque, em segundo lugar, tem uma característica
psicológica básica em sua forma de reagir ante o meio que vive;
terceiro porque eles se explicam pelo que está ocorrendo; pois o
povo negro na comunidade negra compreende o genocídio; porque a
linguagem, as características psicológicas, as condições
econômicas e (4) a localização geográfica em que o povo negro
vive se definem geralmente como guetos. Esta localização
geográfica, juntamente com outros pontos, define o povo negro como
nação (…). Se estamos divididos e cindidos é porque estamos
colonizados, porque os povos do terceiro mundo estão colonizados.
Isto é o que define uma nação. Não nos baseamos no racismo.
Entendemos o nacionalismo nos termos do que é uma nação e
compreendemos o internacionalismo”. Neste ponto a ideologia dos
“Panteras” demonstra suas contradições, pois algumas vezes nega
o nacionalismo negro e em outras assume alguns dos seus pontos
centrais: como a ideia de que os negros estadunidenses formam uma
nação à parte no interior da América do Norte.
O
Império contra os Panteras Negras
Em
1968 os “Panteras” possuíam filiais em 20 cidades e dois anos
depois esse número subiria para 45 – e calcula-se que no seu auge
tenha chegado a5 mil membros –, tornando-se um dos movimentos da
esquerda revolucionária mais importantes dos Estados Unidos. É
justamente desse período a afirmação de Edgard Hoover, diretor do
FBI, segundo a qual eles representavam a maior ameaça interna ao
país. Desde então os aparelhos de controle e repressão dos Estados
Unidos colocaram como uma de suas tarefas principais a erradicação
dessa organização, com processos fraudulentos, prisões e mesmo
execuções extrajudiciais. Contra ela foi utilizado o
CounterIntelligence Program (COINTELPRO) – um programa de
contrainteligência que tinha o objetivo de coordenar o trabalho de
infiltração de espiões e provocadores nas organizações de
esquerda e a criação de um esquema de contrainformação visando a
isolar e desmoralizar as organizações-alvo de sua ação.
Na
metade da década de 1970 – quando o grupo praticamente não mais
existia –, o próprio Congresso estadunidense formou uma comissão
de inquérito que constatou os abusos cometidos pelo FBI e outros
órgãos governamentais contra os “Panteras Negras”.
Recentemente, por exemplo, se descobriu que um dos ativistas que
fornecia as armas ao grupo, o nipo-americano Richard Masato Aoki, era
na verdade um agente infiltrado.
Apenas
nos primeiros quatro anos de existência 34 de seus militantes foram
assassinados – a maioria em supostos confrontos com a polícia. Em
28 de outubro de 1967, Newton se envolveu num conflito com alguns
policiais que levou à morte de um deles. Julgado por um tribunal
composto exclusivamente por brancos,ele foi condenado em setembro de
1968 a 15 anos de prisão. Houve a partir de então uma grande
campanha para que fosse libertado e, em agosto de 1970, ele acabou
sendo solto após novo julgamento.
No
dia 6 de abril de 1968, contra a vontade da direção nacional, uma
ala dos “Panteras Negras”, comandada por Cleaver, resolveu
realizar uma ação armada contra policiais num protesto contra o
então recente assassinato de Luther King. Após o confronto, que
resultou em vários feridos, Cleaver e Bobby Hutton – de apenas 17
anos – se refugiaram no porão de uma casa e rapidamente foram
cercados. Cleaver, temendo por uma execução sumária, recomendou
que tirassem as roupas e saíssem nus, demonstrando que estavam
desarmados. Contudo, Bobby tirou apenas a camisa e ao sair do
esconderijo foi morto com vários tiros, inclusive pelas costas. Ele
foi o primeiro membro do partido a ser assassinado pela polícia.
Cleaver foi preso e no transcorrer do processo fugiu para Cuba,
depois seguiu para Argélia, onde montou um escritório de relações
internacionais do grupo.
Um
ano depois do assassinato de Hutton, 21 dos principais líderes dos
“Panteras Negras” em Nova Iorque foram presos e falsamente
acusados de terrorismo. A fiança estabelecida pelo juiz foi
astronômica. Esta foi outra estratégia para enfraquecer
financeiramente a organização, que era obrigada a fazer grandes
esforços para conseguir recursos visando a pagar as despesas das
dezenas de processos que eram abertos. O processo contra os 21 durou
mais de um ano e foi concluído pela absolvição dos réus.
No
mês de setembro de 1969, em meio à campanha para libertar Newton,
Bobby Seale foi preso em Chicago sob a acusação de conspirar para
um motim e de ter assassinato um suposto informante do FBI dentro de
sua organização. Diante de sua postura inconformista no tribunal, o
juiz determinou que fosse amordaçado e amarrado na cadeira. Uma
atitude despótica que ocasionou protestos em todo o país. Nesse
ínterim – estando Newton e Seale presos e Cleaver exilado–,
David Hillard tornou-se presidente interino, mas mesmo ele não
escapou das perseguições da justiça.
Outros
casos escandalosos foram os assassinatos de Fred Hampton e Mark
Clark, dois líderes da atuante seção partidária no estado de
Illinois, ocorridos em 5 de dezembro de 1969. Foram executados dentro
do apartamento de Hampton, possivelmente enquanto dormiam. Poucos
meses antes de ser assassinado – num comício em defesa da
liberação de Newton –, Hampton havia dito:“vocês podem prender
um revolucionário, mas não podem prender a revolução”. Agora
eles não apenas prendiam, mas matavam.
Quatro
dias depois do duplo homicídio, 300 membros da SWAT iniciaram um
feroz ataque contra o escritório dos “Panteras Negras”. O
confronto durou mais de cinco horas e três pessoas ficaram feridas.
Nesse mesmo período, várias outras sedes foram atacadas com igual
furor. Ninguém tinha mais dúvidas de que ali se travava uma guerra.
Toda
essa monstruosa operação de cerco e aniquilamento levada a cabo
pelo Estado surtiu efeito. Ocorreram vários rachas internos – uma
parte deles incentivada por infiltrados e pelo pessoal da
contrainformação – e muitos militantes, impactados pelas
sucessivas derrotas, abandonaram o grupo. No ano de 1971, Cleaver e
vários ativistas, especialmente de Nova Iorque, romperam com a
direção. E também um grupo de tendência militarista funda o
Exército Negro de Libertação, que organizou várias ações
armadas.
A
última grande campanha dos “Panteras Negras” ocorreu em 1972,
quando o que restava da organização em todo o país foi mobilizado
para eleger Seale à prefeitura de Oakland. Para isso, fecharam as
sedes em várias cidades importantes e transferiram os seus
militantes para aquela batalha eleitoral local. Algo que lhes trouxe
grande prejuízo organizativo, do qual o grupo jamais se recuperou.
Visando a alcançar o seu objetivo eleitoral, adotaram um discurso
menos radical e até se ligaram ao Partido Democrático. Apesar das
concessões e dos enormes esforços empreendidos, os “Panteras”
não elegeram nem o prefeito nem a sua candidata à vereadora, Elaine
Brown.
A
grave derrota levou ao aprofundamento da crise interna. Seale e
Newton se desentenderam sobre o rumo do movimento, e o primeiro
renunciou à presidência. Nesse momento, o Partido dos Panteras
Negras estava reduzido a algumas dezenas de militantes. Para
complicar a situação, Newton – acusado de assassinar uma
prostituta – foi obrigado a fugir do país e se abrigar em Cuba em
agosto de 1974, deixando Elaine Brown no seu lugar. Newton voltou em
1977 durante a administração do presidente Carter, quando o clima
político havia desanuviado – sendo julgado e absolvido. Contudo,
acabou sendo assassinado por um pequeno traficante em 22 de agosto de
1989. Com esse episódio – simbolicamente – fechava-se
tragicamente mais uma página heroica da história de luta dos negros
estadunidenses.
*
Augusto Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da
Fundação Maurício Grabois e autor dos livros Marxismo, história e
a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é
Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas:
marxismo e os dilemas da revolução, todos publicados pela Editora
Anita Garibaldi.
Fonte:
Fundação Mauricio Grabois