Em
perfil publicado na Folha em 12 de novembro de 1984, o sociólogo
Florestan Fernandes retoma a trajetória e prática política do
ex-deputado e líder da ALN
O
4 de novembro de 1969 incorporou-se à história graças a um feito
policial-militar que culminou na morte de Carlos Marighella. Faz,
portanto, quinze anos que morreu o principal líder da ALN (Ação
Libertadora Nacional), figura política que se tornara conhecida como
militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro), seu dirigente de
cúpula e também seu deputado no Congresso que elaborou a
Constituição de 1946. Ele foi perseguido como a caça mais cobiçada
e condenado à morte cívica, eliminação da memória coletiva. Só
em dezembro de 1979, quando seus restos mortais foram trasladados
para Salvador, sua cidade natal, Jorge Amado proclamou o fim da
interdição expiatória: "Retiro da maldição e do silêncio e
aqui inscrevo seu nome de baiano: Carlos Marighella". No ano
passado, removemos outra parte da interdição, em uma cerimônia
pública de recuperação cívica e de homenagem que "lavou a
alma" de socialistas e comunistas em São Paulo.
Um
Homem não desaparece com a sua morte. Ao contrário, pode crescer
depois dela, engrandecer-se com ela e revelar sua verdadeira estátua
à distância. É o que sucede com Marighella.
Ele
não redimiu os oprimidos nem legou um partido novo. Mas atravessou
as contradições que vergaram um partido que deveria ter enfrentado
a ditadura revolucionariamente, acontecesse o que acontecesse.
Desmascarou assim a realidade dos partidos proletários na América
Latina. Em uma situação histórica de duas faces (como gosto de
descrever), contrarrevolução e revolução ficam tão presas uma à
outra que são os dois lados de uma mesma moeda. À superfície,
parece que a luta de classes opera em mão única — no sentido e a
favor dos donos do capital e do poder. Todavia, no subterrâneo (na
“infraestrutura da sociedade” ou no “meio social interno”)
existem várias fogueiras, e o aparecimento de alternativas
históricas pode depender de “um punhado de homens corajosos” ou
de partidos organizados e preparados para a revolução.
Em
vários países da América Latina, entre eles o Brasil, a burguesia
— apesar da dependência econômica, cultural e política — está
encravada nas estruturas de poder nacional e as controla com mão de
ferro. As ditaduras, “tradicionais” ou “modernas”, marcam as
oscilações súbitas, às vezes de curta duração, da guerra civil
latente para a guerra civil aberta. Nenhum partido dos oprimidos pode
pretender-se revolucionário, na orientação socialista ou
comunista, se não estiver preparado para enfrentar tenaz e
ferozmente essas oscilações. A “legalidade”, na acepção de
uma sociedade civil civilizada, é uma ficção. O grande valor de
Carlos Marighella — como o de outros que enfrentaram corajosa e
tenazmente aquelas contradições, com a “crise interna do partido”
— está no fato de ter compreendido objetivamente e exposto sem
vacilações o que a experiência lhe ensinava. No diagnóstico,
algumas vezes, ficou preso a uma terminologia equivocada e a
concepções que ele pretendia apurar e superar através de uma
prática revolucionária consequente com o marxismo-leninismo e com
as exigências da situação histórica. Por fim, acabou vitimado
pela vulnerabilidade central: a inexistência do partido que poderia
abrir novos rumos na transformação revolucionária da sociedade. Um
partido desse tipo não nasce de um dia para o outro. Requer uma
longa e difícil construção. Marighella caiu nos ardis que
apontara, tentando derrotar o inimigo onde era impossível fugir ao
seu “cerco militar estratégico”. Não fora ao fundo da análise
da Revolução Cubana, ignorando o quanto uma situação histórica
revolucionária simplificara os caminhos daquela revolução. A “via
militar” revolucionária, no entanto, se mostraria frágil sob o
capitalismo dependente mais diferenciado e, por vezes, avançado na
América do Sul, especialmente depois da vitória do Exército
Rebelde em Cuba.
As
deficiências e os equívocos de Carlos Marighella resultaram de
fatores incontroláveis e insuperáveis. Ele foi até onde seu dever
exigia, sem meios para tornar a missão necessária realizável. A
revolução proletária não é um “objetivo” do partido
revolucionário. Ela é, ao mesmo tempo, sua razão de ser, seu
sustentáculo e seu produto, mas de tal modo que, quando o partido
revolucionário surge, ele é um coordenador, concentrador e
dinamizador das forças sociais explosivas existentes. Como assinalou
Karl Marx, “a humanidade não se propõe nunca senão os problemas
que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á
sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições
materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir”. O
que qualifica e distingue as posições assumidas por Carlos
Marighella é o propósito de romper com uma linha adaptativa, que
retirava o Partido Comunista do polo proletário da luta de classes,
convertendo-o em “cauda” permanente e em esquerda da burguesia.
O
seu marxismo-leninisimo ficou muito mais próximo da intenção que
da elaboração teórica e prática consequente. O que não o impediu
de encontrar, através da prioridade política e da acumulação de
uma vasta experiência concreta negativa, uma versão objetiva das
sinuosidades do comunismo adaptativo e tolerante que o marxismo
acadêmico só descobriu tarde demais ou, então, nunca teve gana de
desmascarar. No momento mesmo no qual nos vemos de novo impelidos
para os erros do passado, parece indispensável voltar às suas
críticas e às razões de suas rupturas (ainda que seja impensável
reabsorver o conjunto de soluções teóricas e práticas que
inspirou e difundiu). Em três pontos, pelo menos, é indispensável
tomá-lo como referência de uma purificação marxista dos nossos
partidos revolucionários.
O
primeiro ponto tem a ver com os vínculos diretos da teoria com os
fatos concretos e com a realidade, pela experiência crítica e pela
ação crítica. Essa orientação é básica para a elaboração de
um comunismo made in América Latina, construído por nós, embora
com raízes marxistas e leninistas. Ele situa em plano secundário o
intelectual “teórico”, eurocêntrico, e repele as “soluções
importadas”, que impunham os modelos invariáveis de algum
monolitismo soviético, chinês etc. O segundo ponto é o mais
decisivo, pois põe em questão qual é o partido revolucionário que
deve surgir das condições econômicas, sociais e políticas dos
países da América Latina (e do Brasil, em particular). Uma
sociedade civil que repele a civilização para todos e um Estado que
concentra a violência no topo para aplicá-la de forma
ultraopressiva e ultraegoísta envolvem uma barbárie exasperada
específica. Tal partido deverá ser, sempre, uma espécie de
iceberg, por mais confiável e durável que pareça sua “legalidade”.
Isso lhe permitirá interagir dialeticamente nos dois níveis da
transformação revolucionária da sociedade – o burguês, por
dentro da ordem, e o proletário e camponês, contra a ordem. O
terceiro ponto refere-se à aliança com a burguesia, que nunca
deveria ter alcançado a densidade e a permanência que atingiu. Um
partido comunista dócil à burguesia nunca será proletário nem
revolucionário e terá, como sina inexorável, que perverter a
aliança política. “O segredo da vitória é o povo”. O eixo de
gravitação das alianças está, portanto, na solidariedade entre os
oprimidos; em suas lutas anti-imperialistas, nacionalistas e
democráticas, tanto quanto nas suas tentativas de domar a supremacia
burguesa, conquistar o poder ou implantar o socialismo. Em suma,
Carlos Marighella era um sonhador com os pés no chão e a cabeça no
lugar. Ele ainda desafia os seus perseguidores e merece dos
companheiros de rota (e do antigo partido) que levem seriamente em
conta sua tentativa de equacionamento teórico e prático do enigma
do movimento comunista no Brasil.
*
Texto publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo, em 12 de
novembro de 1984.